segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Fenixologia: sobre ver filmes e perder poemas.

 


Em algum momento, com quase 20 anos de idade, frustrado de não ter sido capaz (menos por incompetência, mais por desânimo e descrença em mim mesmo) de realizar um filme, encontrei na poesia de Oswald de Andrade o germe de um fazer cinematográfico por meio da versificação. Sarduy descreveu a poesia de Haroldo de Campos como móvel, uma poesia que não era meramente imagética, ou seja, não correspondia à confecção ou exposição verbal de uma suposta imagem estática, mas de uma sucessão de imagens que se movem, ou melhor, que se transformam constantemente, ou melhor quem sabe, de algo próximo do que Deleuze fala quando emprega o termo “devir”. Não importa a teorização, pois à arte, território do fazer e do como fazer, pouco importam racionalizações ou justificativas (diferente do que as exigências de editais deem a entender), mas o fato de que no Pau Brasil de Oswald se vislumbra uma poesia que não só fala do século XX, da modernidade, da tecnologia, da automatização, da fotografia e do cinema, mas uma poesia que é em si tecnológica, automatizada (automática não creio), fotográfica, cinematográfica, ou seja: moderna. Ou seja: em alguma medida a poesia moderna se fez de movimento. O trem chegando à estação, dos irmãos Lumière; a viagem de trem para Minas realizada pelos modernistas paulistas, viagem na qual a janela do trem se torna análoga a uma tela de cinema. Com Oswald, é possível fazer um poema-documentário. Não só porque ele batizou um dos poemas de “Documentário”, mas porque ele em si é imagem em movimento, é a realidade em 24 frames por segundo, é um documentário de sua própria feitura e de seus meios de produção. Isso seria a base para a escrita de meu livro de estreia, MULTIILHAÇÕES (2024).


Assim, à beira dos vintanos, por meados de 2017-18, me pego escrevendo num velho notebook um poema chamado “Maximiliano, o Louco”. Acreditei que era meu melhor poema até então. Era relativamente extenso, pelo menos se comparado à maior parte de minha produção, e era uma tentativa de traduzir, em alguma medida, mas, principalmente, de fazer o filme Mad Max resplandecer em forma de poema, em linguagem verbográfica. Ou mais simplesmente de fazer uma cena de ação em poema (algo que Camões e Homero fizeram muito melhor, depois eu descobriria). Havia aliterações que eu adorava, completamente influenciadas por paralelismos fonéticos e rímicos realizados por rappers como MF DOOM, Earl Sweatshirt e Black Alien. Havia um verso em específico que eu adorava, em que eu falava de asfalto, da borracha dos carros se arrastando e queimando pela estrada. Perdi o poema, pois o notebook em que foi escrito foi roubado. 


Depois, na pandemia, escrevi outro poema, após um duro choque de realidade quando o poetradutor Guilherme Gontijo Flores me disse que minha poesia era técnica mas puramente abstrata, que eu não comunicava nada nos poemas que o mostrei. Foi durante um breve curso online ministrado por ele. Eu me debulhei em lágrimas (apesar de hoje achar que ele não compreendeu alguns dos poemas, e de eu não ser avesso à abstração, por mais que eu seja grato à sua crítica, que cutucou minha escrita e a levou a explorar outras coisas), mas a vontade de mostrar que eu era sim capaz de escrever um bom poema veio na escrita do meu poema mais longo até hoje: nele, fiz algo que um amigo poeta, Rodrigo, diz nunca ter visto antes num poema: um jumpscare. Como me arrependo de não ter colocado o poema no meu livro. Uma bobagem gigante minha de deixar alguns poemas fora por não terem sido escritos na mesma época… Era um poema sobre uma velha e enorme casa de madeira, cujos corredores eram escuros e as telhas caíam aos pedaços, carcomidas pelo tempo e por cupins. Eu havia passado algumas poucas e boas por cupins nos últimos tempos, e, vivendo numa pandemia, estava há meses trancafiado em casa. De repente no poema surgia um Nosferatu, o tal jumpscare. E o eu-lírico em primeira pessoa se confundia ao vampiro clássico, com suas unhas que não paravam de crescer, assim como ao casarão. Do lado de fora, pela janela, uma luz estranha e avermelhada, uma luz de gritos dos despossuídos. Perdi também o poema, que foi, dessa vez, elogiado por Flores, que me disse “isso sim é um poema de verdade”. Perdi junto de tantos outros, alguns medíocres, outros horríveis, um ou outro eu acreditava estarem muito bons. Tudo por conta do meu e-mail da faculdade, o iduff (fiz graduação em Letras na UFF), ter sido desativado. 


Eu escrevia e/ou salvava tudo no meu googledocs, à época, achando que jamais perderia nada… Cheguei a saber que o e-mail seria desativado eventualmente, mas como eu não sabia uma data precisa, e meu inbox e o drive haviam passado incólumes quando o ano de 2021 se tornou 2022, fui adiando de salvar os documentos para outra conta ou simplesmente no computador. Se arrependimento matasse… eu seria o Nosferatu no fim do filme do Murnau, morto pela luz que me cegou quando finalmente voltei a sair de casa em 2022. Fico tentando me lembrar de outro escritor ou que perdeu um grande número de escritos... e só consigo pensar no Billy Joe Armstrong, que uma vez perdeu um caderno cujas páginas continham o que deveria ter sido um álbum inteiro de letras do Green Day. E me pego pensando que, sendo canções, ele deveria as ter decorado, mas até aí, eu também me vejo vítima da escassa habilidade mnemônica de nossos tempos (desde que Teuth inventou a escrita, como dizia Sócrates-Platão, nos roubando a memória). Venho treinando decorar poemas para remediar esse mal crônico, e me dou conta de que tenho poucos dos meus próprios decorados (embora sejam cheios de versos brancos, irregulares e fragmentados...).


Outro bom poema que eu perdi nessa foi um que dediquei a meus avós paternos, Reginaldo e Nyssia, todo brincando com a grande coleção de quadrinhos e a gigantesca biblioteca maluca de meu avô, que continha caixas da Revista UFO e de páginas da internet impressas. Começava com algo como: “vestindo o parangolé de retículas rídiculas…”,... mas não era isso… e eu passei meses escrevendo e reescrevendo este poema. Enviei para várias pessoas em estágios diferentes… mas ninguém possui mais ele. Quase tudo que escrevo começa ou retorna ao papel em alguma instância ou instante, então talvez haja alguma versão a lápis ou caneta enfiada em algum canto do meu quarto, mas ainda não fui feliz em encontrá-la. Dia desses, num bar horrível de BH, conversando com uma amiga também poeta, Nanda, entrei em parafuso, as mãos suando, o corpo tensionado, pensando e falando sobre o poema que perdi. Realmente me senti desolado e desesperado no momento, pois a UFF nunca respondeu meus e-mails pedindo ajuda para reaver meus documentos perdidos (os quais continham também diversos trabalhos escritos que eu pretendia (re)utilizar, além de certificados etc). Nanda tentou me acalmar dizendo que João Cabral de Melo Neto me diria que o pouco que eu lembrasse do poema perdido seria o que havia de essencial a ele. 


Mas não sei, ainda não me animei em tentar reescrever nenhuma dessas perdas, talvez por frustração com a minha própria autosabotagem de não ter salvado meus documentos quando eu sabia que eles viriam a desaparecer em algum momento. Eu estava assistindo agora ao Testamento de Orfeu (1960), do Jean Cocteau, no qual ele diz que o cinema é mais real que a realidade, e me lembrei de uma frase de outro poema que perdi. Neste, eu começava com o verso “É tudo real de mais, como num filme de Kiarostami” e terminava com “É tudo real de mais, como num filme de John Carpenter”. Entre os dois versos, havia uma descrição detalhada e sensorial de estar num carro com meu pai na infância. Não me lembro tampouco porque não coloquei este poema no livro MULTIILHAÇÕES… Mas pensei em escrever um outro começando com: “Uma vez escrevi um poema que começava com o verso 'É tudo real de mais, como num filme de Kiarostami' e terminava com ‘É tudo real de mais, como num filme de John Carpenter’”. Mas acabei escrevendo esse texto, que é talvez mero desabafo, no fim das contas. 


Curioso como tudo para mim retorna ao cinema. Estou preso nele, nessa armadilha. Vejo como a película preto e branca realça a maneira como a luz e a sombra incidem nos objetos, evidenciando sua textura, sugerindo seu peso, seus atributos físicos que não sua cor. Talvez por isso parece mais real que a realidade. Talvez porque quando vejo movimento dentro de um quadro, reparo no movimento. Nem é que ele seja mais real, mas que ele me reacende à realidade, a vejo com outros olhos, me vejo andando a rua automático, voltando à noite do trabalho, com outros olhos após ver Cocteau caminhando em câmera lenta em p&b. E me vem a vontade de escrever sobre, de tirar da linguagem esse movimento dos tecidos e do esqueleto humano. Ou então de descobrir outros movimentos no ato da escrita, entre os sons e ruídos das palavras, entre as pausas entre um verso e outro, que são quase cortes entre planos, enquanto o branco entre as palavras no verso são choques entre planos. E nesses poemas que perdi, talvez porque tenham sido perdidos, admito, sinto que me aproximei dessa vontade, que eles concretizaram algo. O que dedico a meus avós, inclusive, vou saindo do cinema, indo em direção às sarjetas dos quadrinhos, aos álbuns de retrato, sua cola, suas páginas de plástico. Me vem a vontade, enfim, de como Cocteau, seguir assustado o homem vestido de cavalo negro, o desconhecido. Perder um escrito, suponho, não deixa de ser uma maneira de deslocar o que já prexistia enquanto dado ao terreno fértil do desconhecido. No mesmo filme, Cocteau afirma (como Michelangelo, se não me engano) que a obra já está lá, basta o artista descobri-la. Quem sabe o que escrevi não se perdeu ao ter sido manifestado, está ainda em qualquer lugar, um paradigma que posso vir a reencontrar enquanto sintagma. A língua é real, afinal, mesmo quando não posta em prática. O poema é só a língua sendo mais real que real, se movimentando em câmera lenta ou reverso. Talvez seja possível escrever ao reverso, a partir da perda, recuperando, como no filme de Cocteau a fotografia de Cégeste (re)surge do fogo, intacta. "Phoenixologie", chama a personagem, que havia morrido em seu filme anterior, Orfeu (1950). Afinal, como diz o poeta-pintor-diretor, a poesia é escrita numa língua nem viva nem morta, ou seja, não diferente de nossos poemas perdidos, que vivem de fragmentos de lembrança. Só preciso tomar cuidado para não olhar para trás e não conseguir trazer minha Eurídice de volta do submundo dos drives desativados.


OK, vou tentar reescrever, relembrar. Mas vou mandar outro e-mail para a UFF, de qualquer forma.


Tocando a filmagem ao reverso, a fotografia de Cégeste aparenta surgir das chamas, ao invés de ser consumida por elas.




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